Iacyr Anderson Freitas e o consolo dos demônios mudos

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terça-feira, 30 de setembro de 2008



Grandes poetas são figuras não muito fáceis de encontrar, embora o mundo esteja repleto de poetas menores, medíocres e muito enfáticos na propaganda de sua própria poesia. Acredito que se deva a estes a má vontade com que a poesia anda sendo recebida, nos últimos anos, entre os leitores. Certas facções tornaram o poeta talvez desfrutável, gaiato e folclórico demais, e, no Brasil, qualquer coisa séria pode virar besteirinha ou ser tida como tal, devido ao espírito frívolo-perverso que parece presidir nossa indústria cultural, afoita em fazer e desfazer reputações cintilantes e ocas. Portanto, torce-se o nariz para a palavra “poeta”, como se ela abrigasse coisas mais para levianas e desprezíveis. E certos poetas não fazem senão achar que isso é ótimo para eles, que os brilhinhos e poses ocasionais é que são quentes e valem a pena - portanto, merecem a irrisão a que são relegados.

Nunca me deixei impressionar nem abalar por modas poéticas nem nunca deixei de crer que o verdadeiro poeta sabe ser digno de si mesmo, de sua própria voz, mantendo-se fiel a uma verdade de que é portador mais para fatal que para eufórico. Sempre fui, para bem ou mal, muito fiel às leituras de poetas que me marcaram fundo, como se devesse àqueles livros (de Drummond, Cabral, Pessoa, Rilke) uma lealdade que, cumprida, só me fez bem. E sempre tive dificuldades com novos nomes do panteão poético brasileiro por isso – não queria me arriscar, queria mais tempo para conhecê-los, e, atropelado pela necessidade de fazer minha prosa, de seguir meu caminho literário, muitas vezes não empreendi viagens sérias a livros de nomes novos que, por uma outra razão, me agradaram aqui e ali. Não foi o caso de Iacyr Anderson Freitas.

Conheci Iacyr quando me propus a sair em busca de diálogo com o mundo literário, ao lançar meu primeiro livro de contos, “Nó de sombras”. Ele me mandou uma coletânea de poemas seus, “A soleira e o século”, cujos poemas foram me fisgando e obrigando a fazer morada entre as suas páginas, e alguns eram tão lapidares que fiquei perplexo por ele já não ser conhecido no Brasil literário todo.

Iacyr foi se tornando um hábito. Concluí que, decididamente, há algo de errado nas reputações e nos suplementos, nos leitores de poesia e no resto – por que alguém como ele não está sendo lido como o devido? A meu modo, procurei sanar isso mandando poemas dele a alguns amigos, mencionando-o sempre que, militando por minha prosa, tinha alguma chance de falar da nova poesia brasileira.

Marcas de grandeza

Alguém que escreve “Esse sol já se perdeu/ o minuto em que escrevo (em que alguém/do outro lado desta página/apalpa o fruto avesso que escrevo)/ esse minuto também já se perdeu” poderia ser tido por um poeta ignorável qualquer?
Os livros de que “A soleira e o século” são compostos – “Terra além”, “O ocaso de junho”, “Exercício estrangeiro”, “Toda a gente”, “A poética do escasso”, “Mirante” – estão repletos de grande poesia, de tal modo que, se alguém reclama que não há mais poetas dominadores e convincentes neste país, não sabe do que está falando.

Mergulhando nas páginas de Iacyr, eu entrava numa realidade um tanto melancólica (sua poesia tem pacto com a lucidez e a austeridade), mas tônica, ainda que pareça paradoxal, pela beleza da construção e a justeza da música. A herança drummondiana a percorre, foi assimilada e é conscientemente lembrada. Mas, sem ser grande entendedor de poesia, senti nele muitas outras leituras, e, decididamente, uma carga filosófica que o tornava – a meu temerário desejo – um companheiro de pensamento. Passamos a trocar e-mails constantemente e ele foi se tornando um amigo em Letras, realmente.

Desalento em filosofia, alegria em arte

Não há muito motivo para que andemos felizes neste mundo, mas a infelicidade, tal como o poeta Iacyr a enxerga, é talvez repleta de promessas que mal podemos entender, só intuir. Vejamos: “...Escuta o tempo/que transcende/ os calendários/ e que te espera/ em sigilo/ sob o lençol de todas as idades...” Assim transcritos, esses versos perdem muito, porque Iacyr faz uso sábio dos espaços gráficos e sua poesia tem pacto com a espacialidade, na melhor tradição do moderno. “Nada a dizer: a própria existência/ nos mira de soslaio./Esforçamo-nos demasiado/ para desconstruir o que nos confiaram/Agora estamos livres de toda memória. / A noite nos enlaça numa esquina/ e é apenas noite, sem metáfora/ E sem passado.”

A anomia, a tristeza, a ruína do mundo presente, Iacyr, como todo grande poeta sintonizado com sua época, compreende como ninguém. Leitor de filosofia, atento leitor da melhor prosa de ficção, ele tem uma aguda compreensão da solidão que cerca o verdadeiro artista da palavra, aquele para quem o desalento que o mundo nos dá, filosoficamente, talvez só possa ser compensado, e em caráter precário, pelas alegrias que a arte – com seu fazer imaginativo e quem sabe perdulário – também propicia. Somos obrigados a abraçar o que nos condena, esperando tirar daí alguma energia crucial para continuarmos vivos.

“De nada serve o amor dos nomes,
o apego à linha fixa do instante.
Nascimentos e mortes sucessivas
fendem a hora ao meio.

Basta olhar ao largo:
Acabaram-se as revelações.
Um demônio mudo nos consola.”

Amparados por esse demônio, que nos fita, opaco, é que seguimos em frente. Um dia ainda o ouviremos desabafar. O que, só os deuses sabem...



A SOLEIRA E O SÉCULO
Nankin Editorial/Funalfa Edições/Juiz de Fora/2002
Contato:nankin@nankin.com.br

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