Um malogro chamado realidade

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domingo, 12 de outubro de 2008



Um livro interessante, que é um dos meus companheiros de cabeceira há décadas, é “A orgia perpétua – Flaubert e Madame Bovary”, de Mario Vargas Llosa. Aviso: a edição, da Francisco Alves, é de 1979, e hoje em dia creio que só possa ser encontrada em raras estantes particulares ou em sebos. Dica para algum editor de sensibilidade reeditar, porque o interesse é permanente.

Quem gosta de literatura e gosta de saber quais livros alguns escritores de fama elegem como predileções, revelando os motivos destas em tintas confessionais, encontrará quase um modelo desse gênero no livro de Llosa sobre o romance também paradigmático da que se convencionou chamar “escola realista”.

Llosa começa dizendo que, numa certa época, residindo em Paris, ao sofrer a tentação do suicídio, se purgava lendo o trecho de “Madame Bovary” em que a heroína, já sem outra saída diante do fracasso de seu casamento e de seus amores extraconjugais, endividada sem possibilidade de pagar, toma arsênico. A descrição dessa cena é um dos primores cruéis da arte realista de Flaubert. Ninguém que a tenha lido se esquece do “gosto de tinta” que secava a garganta da infeliz. Temos que acompanhar sua longa agonia, as atrocidades que seu organismo padece, como se o mundo medíocre que a cerca a punisse dessa maneira por ter ousado sonhar. Os sonhos de grandeza romântica de Ema Bovary, sua luta obstinada contra um casamento que seria satisfatório só para uma mulher desprovida de toda imaginação, acabam ali, naqueles estertores pavorosos, e sentimos o peso de uma injustiça ilimitada contra aquela carne. Mas é um dos prodígios da arte de Flaubert: ele queria nos fazer odiar a estupidez pequeno-burguesa com violência, e precisava de um mártir para isso.


Cumplicidade com Llosa


Confesso que Llosa não é dos meus escritores favoritos, e a ironia é que esse livro sobre Flaubert é dele o que mais gosto, porque “Madame Bovary” sim, é um dos cinco livros que acho fundamentais na minha vida, que relerei sempre.

É impressionante como os clássicos reabrem em nós esconsos emocionais nos quais nos refugiamos sempre. É como se, relendo-os, tendo já vivido por procuração aquelas intensidades dramáticas de vidas fictícias, tivéssemos, de algum modo, criado latências semelhantes, pequenas entidades psíquicas de certa autonomia que disputam com nossas partes mais conhecidas e racionais um lugar na nossa personalidade total.

Com o passar do tempo, o apego a certos livros é quase uma declaração de misantropia: eles são mais interessantes que as pessoas reais que nos cercam. Num livro muito relido, reencontro criaturas que são para mim mais reais e interessantes que as pessoas que conheço ou que posso encontrar, digamos, numa festa ou numa reunião social. Iluminam minha vida, fazendo-a mais ampla, mais geral – num certo gesto ou numa fala empolada, é possível reconhecer o farmacêutico Homais, noutro, o médico de província, esse pobre diabo Bovary, com quem Ema se casou, e no sujeito arrumadinho, correto e insípido, que quer “subir na vida”, o apagado Leon.
Quanto a Flaubert, tenho-o em alta conta por pregar, acima de tudo, a integridade da arte contra ideologias políticas e outras tantas bobagens mundanas e exteriores que só fazem mal ao verdadeiro escritor.

Pai de todo o realismo que hoje conhecemos já em formas diluídas, mas não esgotadas, Flaubert nos disse o que mais nenhum escritor digno deste nome esqueceu: que o autor está na obra, inevitavelmente, pouco importando onde e como – mulher, homem, hipopótamo ou borboleta –, visto que tudo que importa é o estilo, a criação, a vida que o texto ganha com o talento e a imaginação empenhados na tarefa de captar e transfigurar.

Disse uma frase célebre: “Os bons sentimentos não dão boa literatura”. Ambígua, a frase é menos compreendida. Sua validez se ergue quando vemos, sucessivamente – e hoje em dia, na enxurrada de mediocridade que se publica – a quantidade de livros ruins escritos com “coração” e “boas intenções”. E disse: “Todos os assuntos são indiferentemente bons ou maus, conforme a maneira com que são tratados, e os que parecem mais vulgares podem tornar-se os melhores”.
Llosa se rende à personagem Ema, como todos já nos rendemos alguma vez. Tem por ela uma paixão que se revela na maneira como vai citando o Flaubert fetichista de sapatos femininos e outros pormenores. Mostra como, precursora involuntária do feminismo, Ema comanda o tímido escriturário Leon nas ações eróticas, destemida e sem moralismos. Quando fala da cena da carruagem, em que na pena discreta e insinuante de Flaubert, se consuma obliquamente uma relação sexual, abre-nos os olhos para a verdade de que o melhor sexo em livros é aquele em que a sugestão e a insinuação prevalecem.

Ema não é feliz com seus amantes. De Rodolfo Boulanger, fazendeiro rico e afetado, passa para o escriturário Leon. Os dois são tão medíocres quanto seu pobre marido, cada um a seu modo, e só lhe são superiores, a seu ver, porque, afinal de contas, não são ele. Llosa observa que, na tentativa de ser livre, ela se masculiniza, e tinha que se masculinizar para poder fazer de Leon um amante à sua altura, já que ele era quase “feminino”, de tão fraco.

Conheceremos quem é Boulanger, o fazendeiro sedutor, no ato da elaboração daquelas cartas alambicadas, que destina a todas as incautas que conquista e das quais, mais tarde, enfastiado, precisará se livrar. A cena em que se revela completamente a sua fraqueza de caráter é aquela em que Ema lhe aparece em casa, desesperada, para rogar que a ajude a pagar suas dívidas estranguladoras com roupas e outros luxos. Ele se revela, afinal, apenas um cafajeste que conquista mulheres e as contabiliza para a sua vaidade e, que na hora das dificuldades, não passa daquilo que é: um proprietário de terras sovina e bem “realista” na questão de preservar o bolso. O que ele faz é, literalmente, abrir a porta do suicídio para a sua ex-amante.


Traidora ou traída?


Não sabemos se essa mulher, que traiu seu marido e traía o papel tradicional de esposa e mãe (quando a filha lhe nasce, acha-a feia, despreza-a; maternidade não é seu forte), foi uma traidora ou foi a grande traída. Sua grandeza, como observa Llosa, está no fato de ser uma perdedora por antecipação – o que ela quer, a sociedade que a cerca jamais poderá lhe dar, mas ela é maior, mais generosa, mais livre que suas circunstâncias, e terá que pagar caro por isso. Ema, que Llosa compara ao Quixote de Cervantes, acreditou demais nos romances piegas que lia e decidiu que a realidade tinha que se submeter a eles, assim como o Cavaleiro da Triste Figura quis fazer com seus romances de cavalaria. Querer que a quimera seja maior que a vida todos sabemos no que dá.

O eco de “Madame Bovary” na contemporaneidade não pode ser subestimado: quem é não perdeu seu romantismo em contato com os malogros da realidade? O romance é eterno um tanto devido a isso: revela que não há saída para sonhadores, se estes sonhadores persistem em tornar reais seus sonhos mais generosos, mais livres, se não são cínicos, não se acomodam ou não sabem como negociar com os limites da realidade. O malogro os espera em cada curva, e o malogro final pode ser devastador.

Pai do realismo, Flaubert vinha na verdade do romantismo literário, e, para reforçar o quanto dele havia em Ema Bovary, confessou: “Crêem que eu seja apaixonado pelo real, enquanto o detesto: pois que por ódio do realismo é que empreendi esse romance...”
É uma confissão crucial: o artista verdadeiro é um inimigo completo do “realismo” vulgar, qual seja – de uma vida pequeno-burguesa, limitadora, na qual, por covardia, se racionaliza a mesquinhez e se ataca a grandeza dos “românticos” que dela fogem, tachando-os como “sem juízo”. O que nos pede a “vida real”, ou essa criação ideológica tão típica de gente sensata, comedida, adaptada às circunstâncias? Que renunciemos à desmesura, ao sonho, à aventura. Flaubert era artista, acima de tudo: sabia que, esmerando-se em produzir um livro quase maníaco na sua profusão de detalhes realistas, produzia era um protesto contra um mundo detestável, raso, mesquinho, e queria fazê-lo com um máximo de eficiência. Tomado por um realismo passional, queria era, através da apreensão precisa do mundo, perpetrar uma denúncia de sua irremediável pequenez. Ele conseguiu: odiamos todos esses arautos da vida pequena, sensata, provinciana (médicos ineficientes e esforçados, farmacêuticos pedantes e cheios de preconceitos, sedutores vagabundos com suas pieguices calculadas) com acentuado vigor ao relermos seu livro fabuloso: todos os artifícios com os quais as vidas limitadas se disfarçam diante de nós caem por terra ao lembrarmos da lucidez com o que o escritor os desmistificou.

Sabemos, pelas informações que Llosa vai pinçar em sua vida pessoal, sua correspondência, o quanto ele odiou as limitações vulgares de seu mundo, quanto fugiu dele, com auxílio do dinheiro da mãe. Foi um burguês também, mas contrito, desesperado, porque tinha que conviver com algo que em si era maior que qualquer burguesia: o apetite pela arte.

Para combater o tédio e a mediocridade de um mundo utilitário e sem um pingo de grandeza e aventura, tinha só uma solução: “O único meio de suportar a existência é despojar-se na literatura como numa orgia perpétua”.
Creio que, até hoje, não existe outra para nós.

Grito provinciano de Adrienne faz eco universal

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terça-feira, 30 de setembro de 2008



Velhos livros importantes podem ser encontrados em sebos ou em cantos de bancas que vendem coleções fora de moda a bom preço. É possível descobrir ouro puro nos lugares menos olhados. Esconsos meio invisíveis podem estar nos guardando alguma coisa que esperávamos adquirir, e chegamos a achar, supersticiosamente, que era caso de predestinação nós a encontrarmos ali, à mão, parecendo à espera de ninguém além desse comprador ideal que julgamos ser.

Foi assim que topei com um livro que lera havia muito tempo, “Adrienne Mesurat”, de Julien Green. Eu precisava tê-lo para renovar o encantamento obscuro que me causara da primeira vez, relê-lo, porque me entendera com Green como só nos entendemos com dados escritores: na comunhão e na comunidade universal dos irmãos de alma que não podem chegar a se conhecer senão pelas páginas dos livros. Queria recapturar uma sensação que o nome da heroína guardava em mim.

Eu nunca teria sabido de Julien Green se não o visse citado como um dos favoritos de Clarice Lispector. Clarice falara dele em alguma entrevista remota que eu lera, e parecia ter falado também do mineiro Lúcio Cardoso, que teria sido influenciado por Green. Se Clarice e Lúcio admiravam esse Green, era imperioso eu conhecê-lo. O primeiro livro seu que me caiu nas mãos foi exatamente “Adrienne Mesurat”, que havia saído numa edição simples, de bancas, por uma coleção cujo nome não recordo. No reencontro, a edição que comprei foi a da Nova Fronteira, posterior, muito mais cuidada, com foto de Green na capa. E a releitura me colocou diante do mesmo leitor perplexo e grato da primeira vez. Com a vantagem de, em matéria de trama, saber para onde estava indo.

O avesso do escapismo

Com esse título que promete não se sabe quais satisfações românticas para a alma feminina, “Adrienne Mesurat” é uma armadilha para imaginações sentimentais, pois anda na absoluta contramão das Danielle Steels deste mundo. Poderia ser um bagulho escapista qualquer sim, se Green não fosse um escritor de outra espécie, porque reúne elementos comuns nesse tipo de escrita: uma jovem solitária de uma perdida província francesa que se apaixona à primeira vista por um médico que não pode nem mesmo ver, já que vive trancafiada num casarão insalubre com seu pai, um velho avarento e brutal (é a tradição balzaqueana do avarento de província; pensamos imediatamente na situação semelhante em “Eugênia Grandet”), além de uma irmã mais velha, sempre doente e ciumenta (daquelas pessoas que, desgraçadas, proíbem as outras pessoas a seu redor de ser qualquer coisa que não desgraçadas também).

Com escritoras de best-sellers femininos, tudo acabaria bem, é claro, porque as artífices do escapismo sabem que lucrarão sempre com o desejo do público de acreditar em coisas absolutamente irrealizáveis (precisamente porque são irrealizáveis, propiciando masturbação indefinida). Mas, para quem procura outra espécie de escritor, Green se apresenta como mestre em não escamotear que o desejo é um poço sem fundo de onde só se escapa pela mentira: ou seja – nunca se escapa.

Com ele, a barra aparece tal como é: pesadíssima. Adrienne não consegue chegar a seu médico idolatrado à distância – ele, aliás, é um fraco, um doente, dominado por uma irmã solteirona monstruosa. Tampouco Adrienne escapa a seu casarão, a seus passeios milimétricos, à sua vida insignificante. Vê a irmã mais velha fugir do odiado pai para a morte, e lhe aparece mais tarde uma amiga que é, na verdade, uma velha prostituta disposta a explorar a sua completa inocência quanto às realidades deste mundo. Fará a tentativa de fuga mais patética que já conheci em heroínas oprimidas: consegue chegar a uma cidadezinha próxima à sua e, medrosa dos homens que vê, de caras novas, de um mundo nada familiar (embora o seu mundo familiar seja seu inferno, é ao menos conhecido) e acaba voltando para casa, para o pai terrível. Mais terrível ainda será o que fará para atrair o olhar do médico para a sua janela: vai quebrá-la e cortar-se com os vidros.

Sem indulgência com o desespero

Relendo “Adrienne...”, dei-me conta de que a situação da moça tímida, imaginativa e confinada – cujo maior problema é o pai - já me fizera adepto de dois outros romances: o citado “Eugênia Grandet” e também “A herdeira” (“Washington Square”), de Henry James. E que Green estava me oferecendo a pintura mais real, sólida e desesperadora de uma situação muito conhecida e explorada no sentido romântico e lírico: a mulher sonhadora à janela, que não dispõe de outro recurso para olhar para fora de si, para o mundo desejado e inatingível. Bem, a janela fora quebrada dessa vez com uma violência insólita e Adrienne tomaria atitudes ainda mais dramáticas. Green não ia ficar nos pintando as eternas Carolinas. Tinha coisas mais poderosas e graves a dizer.

Ele teve parte de sua obra lançada no Brasil nos anos 80, e cheguei a ler outros romances seus, “Leviatã” e “Meia-noite”, sem sentir o mesmo impacto. Em termos biográficos, o prefácio de “Adrienne Mesurat” é revelador e se constitui numa das razões pelas quais vale ler esse romance – ele nos fala de sua ignorância e, depois, repulsa às idéias de Freud, e conta quanto pôs de si mesmo em Adrienne.

Depressa, uma conclusão se impõe: era um daqueles católicos para os quais o Mal é um fascínio, um assunto substancial. O que caracteriza seu trabalho é a certeza de que este mundo é o Inferno, inequivocamente, e que o desejo está completamente acorrentado à impureza e ao malogro, sem possibilidade de concretização, ou, concretizado, sem horizonte de purificação. As sublimações monstruosas e as evasões tortuosas acabam sendo a única saída. O Outro está lá, para sempre intangível, e o Eu é uma clausura fenomenológica dentro da qual uma alma só pode se debater. Não há nada que não seja jaula e as frestas para o ar que há entre as grades nunca bastam – ao contrário, apenas torturam mais ainda, prometendo o azul da liberdade que não se dá.

Alguém pode alegar que ler gente assim é morbidez, que livros como esse são para masoquistas empedernidos. Os livros, hoje em dia, por mais que os autores estejam à vontade com as liberdades formais e temáticas concedidas e asseguradas pelos sucessivos vanguardismos, andam oprimidos por outra força que não a censura e o moralismo do passado: a da tirania do mercado, que não permite assuntos incômodos, mergulhos radicais na subjetividade confinada e finais pessimistas ou em aberto.

O mercado pede coisas tônicas, atenuações, amenizações – mentiras, em suma, e por isso obriga a verdade do ser humano a se apresentar com cara alegre, sadia, otimista, ou seja: convida-a a retirar-se pela porta dos fundos. Livros cômicos, leves, biográficos, romances que não se desviem do entretenimento, é o que se quer. Não se admira mais, nem se estimula pelo aval do sucesso material, o escritor que tem coragem de se arriscar em zonas humanas onde a solidão e a incomunicabilidade podem ser irremediáveis. A imaginação moral, que pode redundar em tragédia, é coisa estranha para o mercado. E nem mesmo alguns vanguardistas, que defendem as inovações formais e execram qualquer romance “psicológico” (com isso, os Greens vão para o ralo), escapam a ser circenses, com suas pirotecnias de forma. Oferecem, alguns, a sordidez como diversão, a atenuação cosmética do Mal, feito “entertainers” que não se atreverão nunca a contrariar o gosto das massas. A indústria cultural é liberal, está disposta a fazer as pazes com qualquer coisa que faça sucesso (e aí faz vista grossa às objeções morais), mas não simpatiza nem um pouco com o que não seja frívolo.

A ligação de Lúcio Cardoso com Julien Green se explica. Fiquei pensando nas vezes em que, nas Minas onde vivo, vislumbrei algo de Adrienne Mesurat em mulheres caladas, tímidas e esquivas olhando cautelosamente pelas janelas de casarões ou andando devagar, o olhar distante, sobre as ladeiras de paralelepípedos. Não se pode saber nada, mas é possível adivinhar tudo: às janelas, aparecem aqueles olhares de prisioneiras de um mundo atemporal em sua aridez sem fim, ainda que a luzinha azul da televisão esteja acesa em algum canto da casa.

O mundo das Adriennes não mudou tanto assim. É gente que você sabe que nunca escapará a uma sina de pequenez, sovinice, tristeza, exílio, desespero. Porque essa sina é tudo que tem, é sua explicação, seu nexo ontológico. Algumas dessas pessoas parecem ter ultrapassado há muito tempo as fronteiras da solidão terminal e viver já na loucura mansa, no delírio confinado que volta e meia trazem a público, incapazes de esconder a sua vulnerabilidade. O grito francês de Green-Adrienne ecoa plenamente no interior do Brasil, e talvez no resto do mundo.
Escritores como ele só têm a oferecer um prazer e uma compensação: a lucidez. Para alguns, basta. Mas, é bem compreensível que ele esteja fora da moda e não se fale mais de seus livros. Os alguns são poucos, e parecem diminuir dia após dia.



Iacyr Anderson Freitas e o consolo dos demônios mudos

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Grandes poetas são figuras não muito fáceis de encontrar, embora o mundo esteja repleto de poetas menores, medíocres e muito enfáticos na propaganda de sua própria poesia. Acredito que se deva a estes a má vontade com que a poesia anda sendo recebida, nos últimos anos, entre os leitores. Certas facções tornaram o poeta talvez desfrutável, gaiato e folclórico demais, e, no Brasil, qualquer coisa séria pode virar besteirinha ou ser tida como tal, devido ao espírito frívolo-perverso que parece presidir nossa indústria cultural, afoita em fazer e desfazer reputações cintilantes e ocas. Portanto, torce-se o nariz para a palavra “poeta”, como se ela abrigasse coisas mais para levianas e desprezíveis. E certos poetas não fazem senão achar que isso é ótimo para eles, que os brilhinhos e poses ocasionais é que são quentes e valem a pena - portanto, merecem a irrisão a que são relegados.

Nunca me deixei impressionar nem abalar por modas poéticas nem nunca deixei de crer que o verdadeiro poeta sabe ser digno de si mesmo, de sua própria voz, mantendo-se fiel a uma verdade de que é portador mais para fatal que para eufórico. Sempre fui, para bem ou mal, muito fiel às leituras de poetas que me marcaram fundo, como se devesse àqueles livros (de Drummond, Cabral, Pessoa, Rilke) uma lealdade que, cumprida, só me fez bem. E sempre tive dificuldades com novos nomes do panteão poético brasileiro por isso – não queria me arriscar, queria mais tempo para conhecê-los, e, atropelado pela necessidade de fazer minha prosa, de seguir meu caminho literário, muitas vezes não empreendi viagens sérias a livros de nomes novos que, por uma outra razão, me agradaram aqui e ali. Não foi o caso de Iacyr Anderson Freitas.

Conheci Iacyr quando me propus a sair em busca de diálogo com o mundo literário, ao lançar meu primeiro livro de contos, “Nó de sombras”. Ele me mandou uma coletânea de poemas seus, “A soleira e o século”, cujos poemas foram me fisgando e obrigando a fazer morada entre as suas páginas, e alguns eram tão lapidares que fiquei perplexo por ele já não ser conhecido no Brasil literário todo.

Iacyr foi se tornando um hábito. Concluí que, decididamente, há algo de errado nas reputações e nos suplementos, nos leitores de poesia e no resto – por que alguém como ele não está sendo lido como o devido? A meu modo, procurei sanar isso mandando poemas dele a alguns amigos, mencionando-o sempre que, militando por minha prosa, tinha alguma chance de falar da nova poesia brasileira.

Marcas de grandeza

Alguém que escreve “Esse sol já se perdeu/ o minuto em que escrevo (em que alguém/do outro lado desta página/apalpa o fruto avesso que escrevo)/ esse minuto também já se perdeu” poderia ser tido por um poeta ignorável qualquer?
Os livros de que “A soleira e o século” são compostos – “Terra além”, “O ocaso de junho”, “Exercício estrangeiro”, “Toda a gente”, “A poética do escasso”, “Mirante” – estão repletos de grande poesia, de tal modo que, se alguém reclama que não há mais poetas dominadores e convincentes neste país, não sabe do que está falando.

Mergulhando nas páginas de Iacyr, eu entrava numa realidade um tanto melancólica (sua poesia tem pacto com a lucidez e a austeridade), mas tônica, ainda que pareça paradoxal, pela beleza da construção e a justeza da música. A herança drummondiana a percorre, foi assimilada e é conscientemente lembrada. Mas, sem ser grande entendedor de poesia, senti nele muitas outras leituras, e, decididamente, uma carga filosófica que o tornava – a meu temerário desejo – um companheiro de pensamento. Passamos a trocar e-mails constantemente e ele foi se tornando um amigo em Letras, realmente.

Desalento em filosofia, alegria em arte

Não há muito motivo para que andemos felizes neste mundo, mas a infelicidade, tal como o poeta Iacyr a enxerga, é talvez repleta de promessas que mal podemos entender, só intuir. Vejamos: “...Escuta o tempo/que transcende/ os calendários/ e que te espera/ em sigilo/ sob o lençol de todas as idades...” Assim transcritos, esses versos perdem muito, porque Iacyr faz uso sábio dos espaços gráficos e sua poesia tem pacto com a espacialidade, na melhor tradição do moderno. “Nada a dizer: a própria existência/ nos mira de soslaio./Esforçamo-nos demasiado/ para desconstruir o que nos confiaram/Agora estamos livres de toda memória. / A noite nos enlaça numa esquina/ e é apenas noite, sem metáfora/ E sem passado.”

A anomia, a tristeza, a ruína do mundo presente, Iacyr, como todo grande poeta sintonizado com sua época, compreende como ninguém. Leitor de filosofia, atento leitor da melhor prosa de ficção, ele tem uma aguda compreensão da solidão que cerca o verdadeiro artista da palavra, aquele para quem o desalento que o mundo nos dá, filosoficamente, talvez só possa ser compensado, e em caráter precário, pelas alegrias que a arte – com seu fazer imaginativo e quem sabe perdulário – também propicia. Somos obrigados a abraçar o que nos condena, esperando tirar daí alguma energia crucial para continuarmos vivos.

“De nada serve o amor dos nomes,
o apego à linha fixa do instante.
Nascimentos e mortes sucessivas
fendem a hora ao meio.

Basta olhar ao largo:
Acabaram-se as revelações.
Um demônio mudo nos consola.”

Amparados por esse demônio, que nos fita, opaco, é que seguimos em frente. Um dia ainda o ouviremos desabafar. O que, só os deuses sabem...



A SOLEIRA E O SÉCULO
Nankin Editorial/Funalfa Edições/Juiz de Fora/2002
Contato:nankin@nankin.com.br

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