Grito provinciano de Adrienne faz eco universal

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terça-feira, 30 de setembro de 2008



Velhos livros importantes podem ser encontrados em sebos ou em cantos de bancas que vendem coleções fora de moda a bom preço. É possível descobrir ouro puro nos lugares menos olhados. Esconsos meio invisíveis podem estar nos guardando alguma coisa que esperávamos adquirir, e chegamos a achar, supersticiosamente, que era caso de predestinação nós a encontrarmos ali, à mão, parecendo à espera de ninguém além desse comprador ideal que julgamos ser.

Foi assim que topei com um livro que lera havia muito tempo, “Adrienne Mesurat”, de Julien Green. Eu precisava tê-lo para renovar o encantamento obscuro que me causara da primeira vez, relê-lo, porque me entendera com Green como só nos entendemos com dados escritores: na comunhão e na comunidade universal dos irmãos de alma que não podem chegar a se conhecer senão pelas páginas dos livros. Queria recapturar uma sensação que o nome da heroína guardava em mim.

Eu nunca teria sabido de Julien Green se não o visse citado como um dos favoritos de Clarice Lispector. Clarice falara dele em alguma entrevista remota que eu lera, e parecia ter falado também do mineiro Lúcio Cardoso, que teria sido influenciado por Green. Se Clarice e Lúcio admiravam esse Green, era imperioso eu conhecê-lo. O primeiro livro seu que me caiu nas mãos foi exatamente “Adrienne Mesurat”, que havia saído numa edição simples, de bancas, por uma coleção cujo nome não recordo. No reencontro, a edição que comprei foi a da Nova Fronteira, posterior, muito mais cuidada, com foto de Green na capa. E a releitura me colocou diante do mesmo leitor perplexo e grato da primeira vez. Com a vantagem de, em matéria de trama, saber para onde estava indo.

O avesso do escapismo

Com esse título que promete não se sabe quais satisfações românticas para a alma feminina, “Adrienne Mesurat” é uma armadilha para imaginações sentimentais, pois anda na absoluta contramão das Danielle Steels deste mundo. Poderia ser um bagulho escapista qualquer sim, se Green não fosse um escritor de outra espécie, porque reúne elementos comuns nesse tipo de escrita: uma jovem solitária de uma perdida província francesa que se apaixona à primeira vista por um médico que não pode nem mesmo ver, já que vive trancafiada num casarão insalubre com seu pai, um velho avarento e brutal (é a tradição balzaqueana do avarento de província; pensamos imediatamente na situação semelhante em “Eugênia Grandet”), além de uma irmã mais velha, sempre doente e ciumenta (daquelas pessoas que, desgraçadas, proíbem as outras pessoas a seu redor de ser qualquer coisa que não desgraçadas também).

Com escritoras de best-sellers femininos, tudo acabaria bem, é claro, porque as artífices do escapismo sabem que lucrarão sempre com o desejo do público de acreditar em coisas absolutamente irrealizáveis (precisamente porque são irrealizáveis, propiciando masturbação indefinida). Mas, para quem procura outra espécie de escritor, Green se apresenta como mestre em não escamotear que o desejo é um poço sem fundo de onde só se escapa pela mentira: ou seja – nunca se escapa.

Com ele, a barra aparece tal como é: pesadíssima. Adrienne não consegue chegar a seu médico idolatrado à distância – ele, aliás, é um fraco, um doente, dominado por uma irmã solteirona monstruosa. Tampouco Adrienne escapa a seu casarão, a seus passeios milimétricos, à sua vida insignificante. Vê a irmã mais velha fugir do odiado pai para a morte, e lhe aparece mais tarde uma amiga que é, na verdade, uma velha prostituta disposta a explorar a sua completa inocência quanto às realidades deste mundo. Fará a tentativa de fuga mais patética que já conheci em heroínas oprimidas: consegue chegar a uma cidadezinha próxima à sua e, medrosa dos homens que vê, de caras novas, de um mundo nada familiar (embora o seu mundo familiar seja seu inferno, é ao menos conhecido) e acaba voltando para casa, para o pai terrível. Mais terrível ainda será o que fará para atrair o olhar do médico para a sua janela: vai quebrá-la e cortar-se com os vidros.

Sem indulgência com o desespero

Relendo “Adrienne...”, dei-me conta de que a situação da moça tímida, imaginativa e confinada – cujo maior problema é o pai - já me fizera adepto de dois outros romances: o citado “Eugênia Grandet” e também “A herdeira” (“Washington Square”), de Henry James. E que Green estava me oferecendo a pintura mais real, sólida e desesperadora de uma situação muito conhecida e explorada no sentido romântico e lírico: a mulher sonhadora à janela, que não dispõe de outro recurso para olhar para fora de si, para o mundo desejado e inatingível. Bem, a janela fora quebrada dessa vez com uma violência insólita e Adrienne tomaria atitudes ainda mais dramáticas. Green não ia ficar nos pintando as eternas Carolinas. Tinha coisas mais poderosas e graves a dizer.

Ele teve parte de sua obra lançada no Brasil nos anos 80, e cheguei a ler outros romances seus, “Leviatã” e “Meia-noite”, sem sentir o mesmo impacto. Em termos biográficos, o prefácio de “Adrienne Mesurat” é revelador e se constitui numa das razões pelas quais vale ler esse romance – ele nos fala de sua ignorância e, depois, repulsa às idéias de Freud, e conta quanto pôs de si mesmo em Adrienne.

Depressa, uma conclusão se impõe: era um daqueles católicos para os quais o Mal é um fascínio, um assunto substancial. O que caracteriza seu trabalho é a certeza de que este mundo é o Inferno, inequivocamente, e que o desejo está completamente acorrentado à impureza e ao malogro, sem possibilidade de concretização, ou, concretizado, sem horizonte de purificação. As sublimações monstruosas e as evasões tortuosas acabam sendo a única saída. O Outro está lá, para sempre intangível, e o Eu é uma clausura fenomenológica dentro da qual uma alma só pode se debater. Não há nada que não seja jaula e as frestas para o ar que há entre as grades nunca bastam – ao contrário, apenas torturam mais ainda, prometendo o azul da liberdade que não se dá.

Alguém pode alegar que ler gente assim é morbidez, que livros como esse são para masoquistas empedernidos. Os livros, hoje em dia, por mais que os autores estejam à vontade com as liberdades formais e temáticas concedidas e asseguradas pelos sucessivos vanguardismos, andam oprimidos por outra força que não a censura e o moralismo do passado: a da tirania do mercado, que não permite assuntos incômodos, mergulhos radicais na subjetividade confinada e finais pessimistas ou em aberto.

O mercado pede coisas tônicas, atenuações, amenizações – mentiras, em suma, e por isso obriga a verdade do ser humano a se apresentar com cara alegre, sadia, otimista, ou seja: convida-a a retirar-se pela porta dos fundos. Livros cômicos, leves, biográficos, romances que não se desviem do entretenimento, é o que se quer. Não se admira mais, nem se estimula pelo aval do sucesso material, o escritor que tem coragem de se arriscar em zonas humanas onde a solidão e a incomunicabilidade podem ser irremediáveis. A imaginação moral, que pode redundar em tragédia, é coisa estranha para o mercado. E nem mesmo alguns vanguardistas, que defendem as inovações formais e execram qualquer romance “psicológico” (com isso, os Greens vão para o ralo), escapam a ser circenses, com suas pirotecnias de forma. Oferecem, alguns, a sordidez como diversão, a atenuação cosmética do Mal, feito “entertainers” que não se atreverão nunca a contrariar o gosto das massas. A indústria cultural é liberal, está disposta a fazer as pazes com qualquer coisa que faça sucesso (e aí faz vista grossa às objeções morais), mas não simpatiza nem um pouco com o que não seja frívolo.

A ligação de Lúcio Cardoso com Julien Green se explica. Fiquei pensando nas vezes em que, nas Minas onde vivo, vislumbrei algo de Adrienne Mesurat em mulheres caladas, tímidas e esquivas olhando cautelosamente pelas janelas de casarões ou andando devagar, o olhar distante, sobre as ladeiras de paralelepípedos. Não se pode saber nada, mas é possível adivinhar tudo: às janelas, aparecem aqueles olhares de prisioneiras de um mundo atemporal em sua aridez sem fim, ainda que a luzinha azul da televisão esteja acesa em algum canto da casa.

O mundo das Adriennes não mudou tanto assim. É gente que você sabe que nunca escapará a uma sina de pequenez, sovinice, tristeza, exílio, desespero. Porque essa sina é tudo que tem, é sua explicação, seu nexo ontológico. Algumas dessas pessoas parecem ter ultrapassado há muito tempo as fronteiras da solidão terminal e viver já na loucura mansa, no delírio confinado que volta e meia trazem a público, incapazes de esconder a sua vulnerabilidade. O grito francês de Green-Adrienne ecoa plenamente no interior do Brasil, e talvez no resto do mundo.
Escritores como ele só têm a oferecer um prazer e uma compensação: a lucidez. Para alguns, basta. Mas, é bem compreensível que ele esteja fora da moda e não se fale mais de seus livros. Os alguns são poucos, e parecem diminuir dia após dia.



1 comentários:

  1. Que maravilha de texto, que eu li de maneira minuciosa e atenta-- para meu deleite. A maneira como você faz, além da 'crítica' ao livro de Green, uma espécie de crônica, é absolutamente adorável. Em termos de ideias, este poderia ser um texto escrito por mim, quanto ao que são os best-sellers e mesmo o que parte da critica valoriza enquanto 'boa literatura'. E, como você disse, lá se vão os Green pelo ralo. Particularmente, aprecio demais este tipo de literatura, dentro da tradição que você colocou e eu colocaria também mais um autor como referência, Flaubert, o Flaubert de Madame Bovary. Assisti ao filme Thérèse D, recentemente e acredito que você vai gostar, creio que até trocamos figurinhas sobre ele no FB, se bem me lembro. No mais, só posso lhe dar os parabéns por esse texto tão inspirado. Abraço!

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